A Torá carrega a coroa

por Charles Steiman

apresentado no estudo do Minian Matutino da ARI
na quinta, 11 de agosto de 2022

“Nachamu, nachamu ami…” Ainda não esqueci essa melodia. É da Haftará deste próximo Shabat, Shabat Nachamu. O Shabat em que, há 39 anos, eu celebrei o meu Bar Mitsvá. Não precisam fazer muitas contas: fiz 52 – 4 vezes Bar Mitsvá essa semana. Essa melodia e essas três primeiras palavras de Isaías, que suplica que seu povo seja consolado pela tragédia da destruição do Templo, eu talvez jamais esqueça. 

No livro de Devarim – palavras, as palavras que Moisés dirigiu ao povo –, a saga dos israelitas é repetida, as leis de Deus são relembradas, ratificadas e estendidas, e nesta parashá Vaet’chanan o fundamento peculiar desta nação dentre os outros povos é enfatizada: os israelitas têm um Deus único e são, com esse Deus único, parceiros na Criação, responsáveis uns pelos outros e por tudo que habita a Terra.

A partir de um olhar histórico, a Torá hoje é composta de cinco livros, mas possivelmente de quatro até que o livro de Devarim foi incluído. Comumente conhecida e publicada como a Lei de Moisés, ela não é de Moisés! Moisés foi, em sua grandeza e incansável disposição e disponibilidade, aquele que uniu o povo deslocado na terra do Egito a Deus. Ele reconduziu os israelitas à Terra Prometida. Mais do que isso, ele reconduziu os israelitas ao Deus único e à Sua Lei.

Nada mais óbvio, conclusivo e imperativo que, quando o povo é preparado para entrar, de fato, na Terra Prometida, segundo o texto bíblico, que sejam as palavras de Moisés que os inspirem, eduquem e os enquadrem. Hoje em dia, nada funciona melhor na internet do que um meme com uma frase de efeito assinada por um renomado autor ou, até mesmo, Sócrates! 

Ainda a partir de uma perspectiva histórica, o livro de Devarim foi incluído aos outros quatro quando o povo mais precisava dele. E de educação. Acredita-se que os israelitas estavam se desviando do conceito do Deus único. E, sem esse conceito fundamental, o Judaísmo corria e corre risco. E Vaet’chanan tem aqui um papel imprescindível.

“Shemá Israel, Adonai Elohêinu, Adonai Echad”, lemos em Deuteronômio capítulo 6, versículo 4. E o texto continua com o Ve’ahavta, que nos é tão familiar. Gerações de judias e judeus aprendem e ensaiam esse trecho para seu grande momento na bimá. E nós ouvimos e recitamos incansavelmente. Versículo 5: “Você amará o Eterno com toda a sua alma e com toda a sua força” (Veahavta et Adonái Elohêicha bechol-levavchá uvechol-nafshêcha uvechol-meodêcha). Versículo 6: “Leve ao coração estas instruções/palavras que Eu lhe ordeno hoje.” (Vehaiú hadvarim haêle asher anochí metsavchá haiom al-levavêcha). E o 7: “Grave-as sobre seus filhos. Recite-as quando estiver em casa e quando estiver fora, ao se deitar e ao se levantar.” (Veshinantam levanêcha vedibarta bam beshivtechá bebeitêcha uvelechtechá vadêrech uveshochbechá uvekumêcha)

Gravar, cunhar, deixar marcado – Veshinantam! A repetição e a transmissão da Torá são fundamentais para a nação israelita. É o que fazemos hoje, no nosso Minian das Quintas, e toda vez que nos reunimos, recitamos, lemos da Torá, ensinamos, aprendemos. É ela nossa fonte de conhecimento fundamental do Judaísmo, das histórias centrais, das festividades e dos valores. É a Torá, entre nós, que carrega a Coroa! 

No seriado “The Crown” (A Coroa) sobre a história e ascensão da Rainha Elizabeth II ao trono da Inglaterra, ela resolve uma questão prática no início do seu reinado, ainda bem jovem, apelando a um ensinamento que havia aprendido em suas aulas de preparação na adolescência para assumir como monarca. (Elizabeth II também teve aulas de Bat Mitsvá, no seu caso, o estudo da Constituição Inglesa.) Ela anotou em um caderno um conceito filosófico básico de Walter Bagehot, descrito em seu livro “A Constituição Inglesa”, de 1867. Esse conceito postula que uma constituição precisa de dois parceiros, “um para instigar e preservar a reverência da nação” (o digno) e o outro para “empregar essa reverência no trabalho do governo” (o eficiente). O monarca, ela a Rainha, que porta a Coroa, é o parceiro digno, e o gabinete de governo, o parceiro eficiente.

Nossa Lei, a Torá, carrega a Coroa, ela é nossa parceira dignificada. E nós, todos, sem exceção, sem hierarquia, sem privilégios, somos o parceiro eficiente. E como o parceiro eficiente, aquele que, nesse mundo, executa a Lei de Deus, revisitamos o texto ao longo de nossas vidas – de Simchat Torá a Simchat Torá – e, infinitamente, ao longo das gerações. Essa leitura infinita da Torá, na minha opinião, é um exercício incessante de extração de seu cerne, de sua parte mais visceral e essencial.

Essa leitura infinita da Torá, na minha opinião, é um exercício incessante de extração de seu cerne, de sua parte mais visceral e essencial.

Asher Gulak, historiador de origem lituana da Lei judaica, tornou-se um dos fundadores da moderna disciplina da lei judaica na Universidade Hebraica de Jerusalém. Gulak atribuía a sobrevivência da lei judaica ao longo dos tempos, mesmo na ausência de um governo judaico organizado, aos “fundamentos de fé e justiça sobre os quais ela é estabelecida”. Gulak comenta a conexão especial que os judeus traçam entre lei e ética. Para Gulak, a lei é principalmente promulgada e aplicada por um soberano que usa o poder, ou “sanção externa”. Nessa visão, seguimos as leis, mesmo quando não o fazemos de todo o coração, porque elas são aplicadas. Por outro lado, a ação ética reflete o que deveser feito e é impulsionada pela compulsão interna, e não pela força externa. Gulak sugere que uma das distinções da lei judaica é o sentido de que tanto a lei quanto a ética judaicas se originam na mesma fonte. Ele escreve: “O direito [judaico] não deriva da soberania ou do governo, e seu valor central não é a manutenção de um regime ou governo.” Segundo ele, “isso explica por que a lei judaica concerne muito mais os indivíduos e a justiça de suas ações, do que a governança social e sua instituição”.

Na história moderna, o Judaísmo Reformista trouxe uma perspectiva diferente, mas não inusitada, à lei judaica. Em momentos anteriores ou concomitantes ao surgimento da Reforma há mais de 200 anos, também outros movimentos, correntes, manifestações carismáticas, rabinos, conselhos rabínicos já vinham re-tecendo os fios delicados da aplicação da lei judaica – da halachá – em tratados, compêndios, responsas e interpretações. (De fato, é o que fazemos desde que a Lei foi aceita por nós.)

A mim me encanta que o Judaísmo Reformista reconhece e reafirma que a Torá é o princípio unitário da lei, mas não ignora o fato de que mãos humanas moldaram a Torá e que a contribuição humana foi feita no seu desenvolvimento. À luz dessa perspectiva, o Judaísmo Reformista distingue entre leis variadas e dá prioridade às normas morais do que às demandas rituais. Ainda assim, a Reforma sempre considera suas práticas e perspectivas pautadas pela injunção bíblica: tudo o que fazemos deve ser justo, pois a justiça é a vontade de Deus.

Me preparando para essa reflexão, aprendi mais um pouco sobre a minha própria parashá. Mas constato que, de certa forma, eu e as gerações que me antecederam fomos gravados, cunhados pelas palavras, por Devarim. E me pergunto, se nós aqui, quando estudamos, escutamos ou falamos, se estamos levando apenas um colorido novo para o dia, para o fim de semana, ou nos deixamos cunhar – veshinantam – pela essência de uma vida ética, cujas leis podem e devem ser renovadas, re-tecidas e adequadas à vida contemporânea.