Homem justo, irrepreensível era Nôach em sua geração

por Charles Steiman

Reflexão apresentada no Minian Matutino das Quintas na ARI
on-line por Zoom, 27 de outubro de 2022

Inaugurada na Ilha Saadiyat em Abu Dhabi em 4 de fevereiro de 12019, a Casa da Família Abraâmica é uma estrutura projetada pelo arquiteto David Adaye e consiste em uma mesquita, uma sinagoga e uma igreja unidas por fundações únicas em torno de um jardim

Gênesis é pura poesia. É para ser lido inúmeras vezes e, a cada leitura, desvendar uma nova camada, um novo significado. A densidade do livro de Gênesis é um desafio à matéria e à física. Como judeus liberais, extraímos do texto que está aí aquilo que nos leva para além do que está ali escrito. Decolamos da literalidade e alçamos o voo da compreensão e do entendimento tendo contemporaneidade como cenário. 

A parashá Nôach é repleta de matrizes importantes que tanto inspiraram épicos hollywoodianos quanto são símbolos indispensáveis no nosso mundo contemporâneo. Em Nôach acontece de tudo: o dilúvio regenerador sobre uma Terra entregue à injustiça e à corrupção; a ruína da torre de Babel que gera confusão e desentendimento; a menção de Abrão e Sarai ainda antes de se tornarem o patriarca Abraão e a matriarca Sara; a pomba com o ramo de oliveira – símbolo da Paz na Terra e, desde a chegada da Apollo 11 à lua, a Paz no Universo; o arco-íris como representação da aliança de Deus com todas as Suas criaturas, sem exceção! Essa aliança incondicional levou o arco-íris a ser símbolo da diversidade, inicialmente sexual e depois de gênero, e, hoje, de ideologia política e de pensamento. Quem hoje perambula sobre a Terra foi salvo do dilúvio e assim agraciado com a inquebrantável aliança com Deus – todos dançamos sob as cores do arco-íris.

Essa aliança é universal! O arco-íris aparece no céu igualmente para todos. Tão universais quanto o arco-íris são as sete leis de Noé, extraídas dos versículos desta parashá. Diferente dos Dez Mandamentos, não escolhemos receber essas leis. As leis de Noé são para todos os seres humanos que foram salvos do dilúvio. São também as leis básicas dos povos abraâmicos.

Em Noé, Deus vê “um homem justo em sua geração” (Gênesis 6:9). Em Noé, Deus identifica esperança na humanidade e a ele confia a tarefa de ser o seu parceiro no restabelecimento de um mundo renovado, justo e digno.

É nesse personagem, é em Noé que as deputadas e os deputados da Knesset no moderno Estado de Israel em 1953 se inspiram para criar uma das mais significativas honrarias judaicas e, ouso dizer, do mundo. Àqueles não judeus ou àquelas não judias que salvaram, no mínimo, uma única vida judaica do Holocausto, recebem o título de Justo ou Justa entre as Nações. Essas laureadas cidadãs, esses laureados cidadãos foram justos, andaram com Deus, assim como Nôach o fez.

Apesar de estarmos lendo na Torá as particularidades da constituição do povo israelita, essa parashá nos obriga a expandir o nosso olhar para a humanidade.

Deus ameaça a existência do mundo como o havia criado e o extingue, à exceção do homem justo e sua família e das espécies que são recolhidas à arca. A ordem de Deus não foi reunir ouro e prata, preciosidades ou riqueza. Naquele momento, o Criador salvava essencialmente Suas criaturas. Acredito que Deus não tinha dúvida sobre a capacidade humana de regeneração e superação – afinal, fomos criados à Sua imagem e semelhança, somos Seus parceiros, somos corresponsáveis pelo mundo que Ele mesmo nos outorgou.

Pois no dilúvio foi salva a integridade física e espiritual do ser humano. As águas destruidoras do dilúvio são também regeneradoras. Elas abrem uma janela de oportunidade para um recomeço, com ajustes, melhoramentos, novidades. O dilúvio se manifesta alegoricamente em nossas vidas pessoais, na vida comunitária, e nas nações.

“O mundo futuro, cuja conquista está custando a todos os povos tão alto preço em vidas, não valerá os sacrifícios feitos para alcançá-lo se não houver nele melhor entendimento entre os homens.” Com essa afirmação, o Rabino Dr. Henrique Lemle z’l abre o seu livro de 1944 ‘O Drama Judaico’, publicado no Rio de Janeiro.

Dr. Lemle realça um aspecto importante da identidade judaica quando diz que “a religião judaica é o espelho cristalino do destino [do povo de] Israel; suas cerimônias e festas recordam e reconstituem as ocorrências mais importantes da sua atormentada existência. Tais recordações e reconstituições de remotos acontecimentos de toda sorte sempre apontaram aos israelitas os fatores essenciais da razão de viver.”

No prefácio de seu livro de 1944, ainda no meio da Segunda Guerra Mundial, esse próximo trecho nos desafia pela atualidade: “O apavorante incêndio que nos nossos dias devora grande parte da humanidade tem sido alimentado pelo erro, pelo preconceito, pelo ódio. Para evitar a repetição dessas catástrofes no futuro, será necessário que todo ser humano veja em cada um dos outros um irmão.” 

Dr. Lemle escrevia assim não só por estar convencido disso, como também por ter dedicado seus estudos e sua atuação ao estabelecimento da tolerância religiosa. 

A tolerância religiosa foi tema do trabalho de doutorado do Dr. Lemle na Universidade de Würzburg, em 1931, intitulado “Mendelssohn e a tolerância”, a partir da obra do filósofo Moses Meldelssohn, falecido em Berlim em 1786 e considerado o pai do Iluminismo Judaico – a Hazkalá. Nesse trabalho, Dr. Lemle discorre sobre a tolerância religiosa, baseada no direito da Lei Natural, postulada por Mendelssohn, e dedica um capítulo à igualdade de direitos de todas as confissões que, em seu mundo, estavam restritas às três religiões abraâmicas e que hoje pode, por seu caráter humanista e universal, ser indubitavelmente estendida a todas as confissões que conhecemos e que venhamos a conhecer.

A Memória transforma a identidade em algo flexível e permeável, porém robusto e indissolúvel

A tolerância religiosa requer a validação, o respeito, a aproximação com generosidade entre as religiões e, essencialmente, entre seus seguidores. A tolerância está apoiada de forma frágil sobre identidades bem construídas. Em especial dentro da comunidade judaica, o exercício de recordar e reviver acontecimentos, no compasso ininterrupto do tempo, condensa a própria identidade, sem engessá-la. A Memória transforma a identidade em algo flexível e permeável, porém robusto e indissolúvel.

“dentro da comunidade judaica, o exercício de recordar e reviver acontecimentos, no compasso ininterrupto do tempo, condensa a própria identidade, sem engessá-la. A Memória transforma a identidade em algo flexível e permeável, porém robusto e indissolúvel”

A arca foi metaforicamente a ferramenta divina para a salvação da humanidade. Os Acordos Abraâmicos assinados nos últimos anos entre Israel e Bahrain, entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, entre Israel e o Reino do Marrocos e entre Israel e o Sudão são também uma construção humana com vistas a estabelecer um mundo de entendimento e tolerância, que tem como símbolo a nossa tão familiar pomba com o ramo de oliveira.

Em seu texto, o Tratado afirma: “Nós, abaixo-assinados, reconhecemos a importância de manter e fortalecer a paz no Oriente Médio e em todo o mundo com base na compreensão e coexistência mútuas, bem como no respeito pela dignidade e liberdade humana, incluindo a liberdade religiosa. Encorajamos os esforços para promover o diálogo inter-religioso e intercultural para incentivar uma cultura de paz entre as três religiões abraâmicas e toda a humanidade.

Nós, abaixo-assinados, acreditamos que a melhor maneira de enfrentar os desafios é por meio da cooperação e do diálogo e que o desenvolvimento de relações amistosas entre os Estados promove os interesses de uma Paz duradoura no Oriente Médio e em todo o mundo.

Nós, abaixo-assinados, buscamos tolerância e respeito por todas as pessoas para fazer deste mundo um lugar onde todos possam desfrutar de uma vida digna e de esperança, independentemente de sua raça, fé ou etnia.”

Para mim, isso é a mais audaciosa expressão de um mundo pós-dilúvio, da mensagem da história de Nôach: homem justo, irrepreensível era Nôach em sua geração, com Deus andava Nôach.