100 anos de história, alguns milênios de Memória

por Charles Steiman

proferido na festa de lançamento da revista pelos 100 anos do Froien Farain
Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2024

Agradeço ter sido convidado a dizer algumas palavras nessa comemoração tão significativa para a comunidade judaica carioca, para a comunidade judaica brasileira, mas também e em especial para o Brasil, o país que acolheu meus avós e muitos dos antepassados daqueles que estão aqui hoje celebrando. Ou até mesmo aqueles que estão aqui hoje celebrando!

Na minha juventude, trabalhei como pesquisador no Projeto Heranças e Lembranças – imigrantes judeus no Rio de Janeiro. Durante quase quatro anos, a pesquisa entrevistou imigrantes judeus de todas as partes para o Rio e culminou com uma exposição no Museu Histórico Nacional, na Praça XV, em 1989.

Por que mencionar isso é mais significativo do que apenas uma história pessoal e curricular? Aquela foi a primeira vez que a presença judaica foi chancelada por uma instituição brasileira responsável pela narrativa histórica da formação da população brasileira. Pela primeira vez, estávamos sendo apresentados como comunidade num cenário cultural de relevância nacional.

Hoje, as Damas Israelitas nos seus 100 anos de fundação dão mais um passo na direção de inserir nossa história como comunidade imigrante e diversa na nossa Cidade, no nosso País.

A sequência dos fatos históricos da fundação do Froien Farain é conhecida. Já foram publicados livros e artigos sobre essa história primorosa de mulheres imigrantes, hoje brasileiras, empreendedoras. História gera compreensão de fatos, crítica de fatos ou relação de fatos. Agora as Damas dão uma dimensão maior ao seu trabalho, elas dão a dimensão da Memória. A Memória gera comportamento, perspectiva e identidade.

O Êxodo do Egito é um ótimo exemplo disso. Se fosse somente um relato histórico, bastaria que o lêssemos uma vez e o assunto se encerraria ali. Mas para a identidade do povo judeu, ele foi um episódio fundamental. Assim, mesmo que não tenha havido o Êxodo do Egito como o descrevemos, mesmo que não tenha acontecido a travessia do Mar Vermelho como a narramos, mesmo que a história e a arqueologia encontrem outro caminho para os fatos, os judeus do ano 670 aEC na Síria, do ano zero em Israel, do ano 650 na Espanha, na França medieval em 1280, em 1924 na Polônia, ou neste ano de 2024 na Austrália — judeus reúnem-se para o Seder de Pessach e renovam seu compromisso, condensando sua identidade e dando perspectiva para o coletivo.

Isso é o que as Damas fazem toda vez que se reúnem às terças-feiras na sede da rua Afonso Pena na Tijuca, ou quando editam uma publicação, quando realizam um evento, quando incorporam o papel de “Damas Israelitas”. Vocês, Damas, transcendem sua existência individual. Vocês dão a essa comunidade um valor transcendental.

As nossas Damas no Rio comemoram 100 anos de história, bem como pelo menos alguns milênios de Memória. Não é possível descrever o transcurso dos acontecimentos do povo israelita sem a presença feminina. É impossível! Elas sempre estiveram no centro do palco dos acontecimentos, nunca como coadjuvantes. E também na nação israelense. Não só o Israel histórico, mas também o moderno Estado de Israel teve mulheres em posições e momentos chave de decisão, confrontação e liderança. Na nossa publicação, as autoras Jeanette Bierig Erlich e Monique Sochaczewski nos apresentam algumas delas.

Diferente de outros povos com que coabitamos nos últimos milênios, o povo israelita tem uma postura particular perante nossos correligionários em estado de vulnerabilidade – hoje como há 3, 4 milênios. A justiça que gera solidariedade entre judeus não passa pela vontade ou interesse ou disposição de cada um, ela é uma obrigação. E das mais importantes: Tsedaká. A Tsedaká nos aproxima do Deus Único e Abstrato. A Tsedaká é um instrumento com o qual somos instruídos a reparar o mundo: Tikun Olam. Entender que as Damas são tão religiosas em sua essência como aqueles que oram e cumprem mitsvot foi a missão de nossos autores Raul Cesar Gottlieb e Bia Bach.

E a alma do negócio? Só poderíamos ter acesso à alma desse empreendimento tão bem-sucedido pelas vivências e palavras das mulheres que colocam a mão na massa, que são verbo e ato dessa instituição, que se entregam abnegadamente ao bem-estar alheio. Na publicação, temos o privilégio de conhecer o trabalho real e emocionante das Damas com os relatos de Rosa Lerner z’l e de Telma Herszenhaut Kawa.

O cenário dos acontecimentos, primordiais para entendermos o contexto de atuação das Damas naquela comunidade incipiente no início do século 20, é obra das autoras Keila Grinberg e Claudia Beatriz Heynemann. Entender o cenário nacional e internacional revela a habilidade dessas mulheres de navegar a história e eternizar seu trabalho.

E o amor, o amor não tem palavras? Tem. Esse amor à esta causa, tão feminina e tão judaica, é um amor fraternal, um sentimento tão íntimo e delicado, porém inquebrantável… e vamos encontrá-lo nas palavras de Sarita Schaffel à sua irmã.

Ter podido colaborar para esta publicação é um privilégio que devo às Damas e amigas Ida Frajhof Levacov e Telma Herszenhaut Kawa. Desde nosso primeiro encontro, dois anos atrás (ou foi há 25 anos?), caminhamos juntos para que esta revista levasse a grandeza e a beleza deste trabalho também para aqueles que não conhecem o Froien Farain.

Reparar o mundo, ajudar o próximo, oferecer dignidade a nossos correligionários não deve ser um fato histórico a ser recordado em celebrações, mas sim constar no âmbito da nossa Memória, para ser reproduzido, como mínimo, pelos próximos 5 mil anos.