Somente a partir do século 19, judeus começaram a gozar de diretos civis em alguns ducados e condados e principados que constituíam a União das Nações alemãs. No início do século 19, Napoleão Bonaparte trouxe para os territórios que conquistou nesse conglomerado de estados um conjunto de direitos iguais para todos, que foram mantidos com a unificação alemã em 1871 e ratificados com a República de Weimar em 1918.
Para entender o mind set, a mentalidade de muitos dos judeus que viviam na Alemanha, e o processo que culminou com a Noite dos Vidros Quebrados (ou Noite dos Estilhaços), a Kristallnacht, é importante elucidar alguns conceitos acerca do modo de vida na Alemanha e recapitular eventos da comunidade da ARI e seus associados, relacionando-os a eventos históricos.
As vantagens de pertencer a uma nação eram muitas para aqueles judeus no século 19 e início do 20. A forte identificação com Ashkenaz, denominação em hebraico àquela região da Europa Central onde hoje está a Alemanha e adjacências, não era em vão. Houve ali um caminho de mão dupla: Ao serem incluídos como cidadãos nessa nova nação que surgia, os judeus puderam regulamentar sua existência como minoria em um território nacional: desejosos de direitos civis, segurança da integridade física e possibilidade de uma existência pacífica.
Isso não era evidente ou óbvio como é hoje para nós no mundo contemporâneo, como por exemplo aqui no Brasil. Todos temos uma certidão de nascimento, às vezes até duas. Tiramos documentos, temos direito ao aparato burocrático, à justiça, somos cidadãos brasileiros, tiramos passaporte, independente da nossa fé. Nossa fé professamos de forma particular, pagamos mensalidade a uma sinagoga, clube e, assim, possibilitamos ter nossos rabinos, cantores, festas, esse evento! E, além do mais e acima de tudo, temos o moderno Estado de Israel. O moderno lar nacional judaico: um fato novo pós-guerra.
Esse pertencimento à sociedade alemã requeria integrar-se em um nível profundo com aquela nova situação nacional. Isso, entretanto, não era inédito, porque esse movimento já era conhecido na Espanha medieval e em comunidades judaicas no Oriente Próximo.
esse movimento enriquece os dois lados: tanto a sociedade alemã foi enriquecida com a multiplicidade étnica e confessional em seu país, como os judeus puderam alcançar um nível social e cultural único no século 20
A ligação espiritual com Tsion, Jerusalém, não se enfraqueceria ou quebraria com a aquisição de uma identidade nacional forte: idioma, heróis nacionais, cultura, música. Ouso dizer que esse movimento enriquece os dois lados: tanto a sociedade alemã foi enriquecida com a multiplicidade étnica e confessional em seu país, como os judeus puderam alcançar um nível social e cultural único no século 20.
Importante lembrar que essa geração de judeus do fim do século 19 e início do 20 na Europa Central ainda tinha as marcas psíquicas da perseguição medieval aos judeus e consequente instabilidade existencial, especialmente por estarem naquele mesmo cenário. Não havia muito, seus pais ou, no máximo, seus avós tinham saído de guetos ou bairros judaicos restritivos e ainda falavam o judeu-alemão, ou mesmo o ídiche.
A possibilidade de uma identidade nacional abrangente e protetora de direitos civis era uma alternativa muito bem-vinda. Eram judeus alemães de fé mosaica ou fé israelita. O engajamento dos judeus alemães na Primeira Guerra Mundial foi talvez o último e o máximo exemplo dessa postura.
Parte desse pertencimento é ter os deveres e obrigações em relação ao Estado:
O cidadão alemão era e é, até hoje, “meldepflichtig”, obrigado a estar registrado na prefeitura da sua cidade, onde consta, além do seu nome, dados pessoais e endereço, também sua confissão religiosa. E se você mudar de endereço, você notifica a prefeitura, ou até de uma cidade para outra. Esse registro amarra você àquela cidade e às suas obrigações sociais e fiscais, tributárias.
A separação do Estado da Igreja na República de Weimar, ou seja, da pertinência política da pertinência espiritual, visava, como mínimo por parte do Estado, a igualdade entre as confissões religiosas. O cidadão informa ao governo a qual confissão religiosa ele pertence e, do seu salário ou ganho bruto, uma percentagem é recolhida para um fundo e repassada à sua comunidade religiosa. Desse montante, eram viabilizados os templos, os salários dos clérigos, os cemitérios, as instituições beneficentes e de caridade, professores. Isso passou a valer naquela Alemanha a partir de 1918 para católicos apostólicos romanos, para luteranos e para judeus.
A sua ligação com o Estado era regulamentada, forte, transparente e igualitária. Isso valia também para a caixa de saúde e para as caixas de pensão. Você delega ao Estado a sua segurança social e usufrui desse esquema. Essa explicação é para mim a chave de uma visão mais tolerante e generosa para com muitos homens e mulheres que pautavam sua vida nessa relação de confiança e interdependência. Hoje, não podemos julgar aquela geração de complacente, passiva ou permissiva. Eles foram as vítimas! Isso deve sempre ficar muito claro.
Pactos são celebrados por partes que, em algum nível, se afeiçoam. Contratos não necessariamente. Temos um pacto com Deus, não um contrato
E o que isso tem a ver diretamente conosco aqui nessa noite? Por que recordamos essa noite no âmbito dessa sinagoga? Porque a lei não basta para assegurar nossa integridade, nossa segurança, nossa paz, nossa pujança. O regime nacional-socialista que se estabeleceu entre 1933 e 1945 tinha na lei sua chancela. Mas não na ética. Como judeus, temos a obrigação de avaliar os eventos da história, da vida, a partir da perspectiva ética, além da legal. Não somos um povo de contratos, mas de pactos. Pactos são mais profundos, regidos por fundamentos éticos e que permitem ajustes, correções. Pactos são celebrados por partes que, em algum nível, se afeiçoam. Contratos não necessariamente. Temos um pacto com Deus, não um contrato.
No século 20, a Alemanha nazista rompeu o contrato com o povo judeu. E nessa noite de 9 de novembro foi promulgado o Distrato.
Eu pesquiso a vida e a obra do Rabino Dr. Lemle e de biografias que orbitaram em torno dele. Dr. Lemle pertenceu a última gerações de rabinos alemães que ajudaram aquela geração a navegar essa tempestade na nossa história. Em um de seus textos, ele acentua que talvez a tarefa mais difícil de sua atuação rabínica em Frankfurt am Main entre 1934 e 1938 foi convencer pais de que seus filhos não teriam um futuro naquele país, que não teriam ali carreiras universitárias, não se tornariam médicos, ou advogados, e que o melhor seria dar-lhes a oportunidade de aprender um ofício para que pudessem estar aptos à imigração, seja para a Palestina ou qualquer outro lugar. Ele precisava convencer esses pais que o único caminho possível seria se separar de seus filhos e investir no esforço comunitário de emigração.
Na própria história do Dr. Lemle é possível observar o enforcamento da vida das pessoas que vai culminar na Noite dos Vidros Quebrados. E olhando para a sua história, encontrei algumas respostas para uma pergunta que me intrigou muito: Por que na capital federal, no Rio de Janeiro, a ARI foi a última das congregações dos judeus alemães a ser fundada, quando tínhamos aqui o porto com o maior ingresso de imigrantes e uma comunidade judaica já estabelecida e bem-sucedida? A SIBRA em Porto Alegre foi fundada em 1934, a CIP em São Paulo em 1936, e a União no Rio em 1937.
Ao longo dos anos foi repetida a história, que é verídica, de que a ARI só poderia ser fundada por brasileiros natos e com a chegada do Dr. Lemle ao Rio. De fato, a história da fundação da ARI, diferente da CIP e da SIBRA, está diretamente ligada à Noite dos Vidros Quebrados. No Rio, judeus de origem alemã já se reuniam no início da década de 1930. Em 1933, formalizaram esse grupo de interesses com o Centro33. Esse pode ser considerado o marco da imigração dos judeus de origem alemã para o Brasil.
É importante destacar alguns fatos que ocorriam na Alemanha e no Brasil a partir da ascensão do governo nacional-socialista:
- 30 de janeiro de 1933: Hindenburg, presidente da Alemanha, nomeia Hitler Chanceler.
- 1º de abril de 1933: Com a “Lei para a Restauração do Serviço Público”, o governo do Reich impôs uma proibição profissional de funcionários públicos judeus e funcionários públicos que criticassem o regime. Após uma intervenção do presidente do Reich Hindenburg, os judeus que participaram da Primeira Guerra Mundial foram isentos da proibição ocupacional. Neste dia, ocorreu o boicote a estabelecimentos de judeus em toda a Alemanha. Nesse mesmo dia, Dr. Lemle assume o púlpito na comunidade de Mannheim.
- Abril de 1933: “Claro, estamos profundamente preocupados com os objetivos antissemitas claramente reconhecíveis que surgiram recentemente em uma ampla variedade de áreas econômicas e sociais. A Associação Central continua a ver a luta contra eles como um assunto interno alemão. No entanto, estamos convencidos de que os direitos iguais dos judeus alemães, que eles ganharam em seus corações através do sacrifício de sangue e propriedade na guerra e na paz, não serão abandonados novamente, e que eles continuarão a ser inseparavelmente ligados à pátria alemã e serão capazes de trabalhar com todos os outros alemães de boa vontade para o avanço da pátria.” (Mitteilungsblatt des Landesverbandes israelitischer Religionsgemeinden Hessens, 8. Jahrgang, Nr. 4, April 1933, S.2)
- 10 de maio de 1933: A União dos Estudantes Alemães organiza queimas de livros de obras da oposição e de autores judeus. Várias bibliotecas são varridas (“limpas”) nos dias seguintes, especialmente nas cidades universitárias.
- 14 de julho de 1933: O governo do Reich proíbe a formação de partidos. É aprovada a “Lei de Prevenção de Descendência de Doenças Hereditárias”, que permite a esterilização forçada de pessoas portadoras das chamadas “doenças hereditárias”.
- 4 de outubro de 1933: Com a lei do editor, toda a imprensa na Alemanha é “conformada” e atende aos interesses do partido nazista (Gleichschaltung).
- 2 de agosto de 1934: Morre aos 86 anos o presidente Hindenburg. Hitler agora assume também o cargo de Presidente do Reich e se proclama a partir de então “Führer” e “Reichskanzler”. A partir de agora, as Forças Armadas não são mais juramentadas à Constituição, mas a Hitler como pessoa.
Contratado pela comunidade de Frankfurt am Main da Westendstrasse em junho de 1934 como Rabino para a Juventude, uma das mais prestigiosas da Alemanha, Dr. Lemle foi já em 1935 formalmente equiparado aos seus dois colegas mais antigos. Ele também assume serviços nas diferentes sinagogas liberais, mas continua cada vez mais envolvido no trabalho com jovens. Em 1935, ele publica seu livro “Juventude judaica em movimento. Uma palavra a todos.”, uma versão de um discurso proferido às três lojas B’nai Brith em Frankfurt am Main. (J. Kauffmann Verlag, Frankfurt am Main, impresso por M. Lehrberger & Co.). No livro em memória ao Dr. Lemle publicado em 1978, seu contemporâneo e conterrâneo Rabino Egon Loewenstein-Levy, exilado no Chile, afirma que esse livro “contém a frase que foi característica da vida do Dr. Lemle: ‘As pessoas amadurecem nos relacionamentos’. As relações com Deus, com o povo de Israel, com sua comunidade e com as pessoas que fazem parte de seu caminho de vida.”
- 31 de março de 1935: Músicos judeus são proibidos de praticar sua profissão em público.
- 2 de abril de 1935: “História não como mera memória, história como um lugar de confirmação eternamente nova. Povos antes do nosso povo experimentaram seu Deus na natureza, somente na natureza. Povos depois do nosso povo experimentaram seu Deus na natureza. O povo judeu experimenta seu Deus repetidamente na história. Sempre que a história se aproxima desse povo, ele experimenta seu Deus. E repetidamente é o mesmo Deus que foi dedicado a eles na experiência do primeiro ato fundamental de sua história – de fato no Mar Vermelho. É por isso que para o judeu a história pode perder sua dureza; ela nunca é irmã da morte. Somente para o judeu, a história não é morte no final, mas confirmação eterna.” (Boletim da Associação Estadual de Comunidades Religiosas Israelitas em Hessen, nº 8, abril de 1935, Volume 9, página 83, Artigo: Pessach 5675)
- 10 de setembro de 1935: No comício do partido nazista, Hitler promulgou as “Leis de Nuremberg”. A discriminação contra judeus tem agora legalidade baseada em critérios biológicos.
No Brasil, não só o número de imigrantes aumentou enormemente, como seu perfil passou a ser, devido às circunstâncias da Alemanha, completamente diferente das comunidades já estabelecidas do Leste Europeu: os alemães assimilados e educados chegaram com aspirações e histórias de vida diferentes. Os judeus alemães então se organizaram em sua própria associação de assistência.No Rio de Janeiro, os imigrantes judeus alemães realizam o primeiro serviço religioso de Rosh Hashaná pelo rito liberal em 1936, com 20 participantes, sem Sefer Torá e sem shofar. Dez dias depois, em Iom Kipur, já são 40 participantes.
Em Frankfurt, os Lemle já estavam se preparando para a emigração no ano de 1937 – só não sabiam como ou para onde. Margot Lemle relata em suas memórias, “em 1937, fizemos uma viagem de sondagem à Palestina. Estávamos interessados em emigrar para lá. Em Frankfurt, já havia começado o êxodo parcial desta famosa e bem integrada comunidade judaica. Ficamos então sabendo que, na Palestina, um rabino ligado ao movimento liberal não tinha chance alguma de trabalho: a ortodoxia eliminava qualquer tentativa de implantação deste movimento. E como Heiner era um rabino de convicção e sentia profundamente o chamado para realizar o trabalho em que acreditava, resolvemos não fazer aliá.”
- 1º de janeiro de 1938: O status das corporações de direito e utilidade pública é retirado das associações culturais, religiosas e sociais judaicas. Isso altera definitivamente a relação dos judeus com o Estado através da sua confissão religiosa. Em março de 1938, o boletim da comunidade de Frankfurt am Main traz em página inteira um aviso sobre essa mudança e o que ela vai significar na vida cotidiana. E termina com um apelo: “A Federação Religiosa Judaica e as suas associações como organismos de direito privado continuarão a dedicar-se à sua tarefa de fornecer apoio cultural e social aos seus membros. A obrigação legal e moral de cada membro da comunidade permanece inalterada de servir a comunidade e as instituições da comunidade judaica, económica e moralmente, através de contribuições financeiras e participação na vida comunitária.”
- Fevereiro de 1938: “Uma parte significativa da população judaica na Alemanha tem idade avançada, não está apta a emigrar e terá de terminar os seus dias na Alemanha. Para que não se tornem vítimas da caridade pública, seus meios de ganhar a vida não devem ser completamente fechados. A continuação da emigração ordenada – e esta é a única forma de manter as portas da imigração abertas a longo prazo – só é possível se a viabilidade econômica dos judeus na Alemanha não for ainda mais reduzida. Agora que os judeus foram eliminados das posições estatais, culturais e sociais, pedimos ao governo do Reich que pare a redução das oportunidades de emprego para os judeus na Alemanha. Esperamos também que a possibilidade de contato pessoal entre os emigrantes e os seus familiares que têm de permanecer na Alemanha não seja impedida.”
- 13 de março de 1938: Hitler promulga a lei de “Anexação” da Áustria ao Reich alemão. As instituições estatais na Áustria são assumidas pelas autoridades alemãs.
- 6 de agosto de 1938: Dr. Lemle recebe o seguinte telegrama em Frankfurt: “Confirmamos seu chamado como rabino, contrato de trabalho por dois anos segue por correio aéreo, aguardamos sua chegada o mais breve possível com família”. Esse telegrama é fruto da decisão que consta em ata da reunião de diretoria da CIP em São Paulo em 1º de agosto de 1938 sobre sua contratação, “o Dr. Lorch dá ciência de duas cartas do mesmo [do Dr. Lemle], dirigidas a ele e ao Dr. Pinkus. Para conseguir o visto de imigração, o Dr. Lemle precisa de um contrato. Resolve-se mandar o aludido contrato ao Dr. Lemle, obrigando-o de oficiar tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, conforme a nossa resolução.”
A comunidade dos judeus alemães do Rio de Janeiro já sabia desde as Grandes Festas que em breve deveria ter um rabino: “(…) na véspera das festas, o Dr. Loebl expressou os sentimentos da comunidade em palavras eloquentes. Na noite de Rosh Hashonoh, ele falou sobre o estado de espírito daqueles que vieram para o Brasil de sua antiga pátria, que sentiram a necessidade de rezar juntos naquele dia e cujas relações com as pessoas de lá ainda estavam vivas e bem. Na noite de Kol Nidrei, ele falou sobre o elemento humano na religião judaica, que permite ao indivíduo ficar cara a cara com seu Deus, e leu uma saudação do rabino Dr. Lemle, designado para a futura comunidade do Rio de Janeiro.” (Crônica Israelita, 4 de outubro de 1938, SP: Rio de Janeiro)
- 5 de outubro de 1938: Os passaportes dos judeus alemães agora são carimbados com “J” maiúsculo.
- 28 de outubro de 1938: O governo alemão deporta 15.000 judeus poloneses ou de origem polonesa. Eles são deportados à força para a Polônia.
Noite de 9 de novembro de 1938: Sinagogas são vandalizadas e queimadas, residências e estabelecimentos comerciais de judeus apedrejados e destruídos, pessoas vilipendiadas e agredidas na Noite dos Vidros Quebrados. Dr. Lemle estava escalado para falar na Grande Sinagoga da Westendstrasse na sexta-feira, 11 de novembro. Mas ninguém pode ouvi-lo. Ele foi preso como outros 30.000 homens judeus na manhã da quinta-feira, 10 de novembro.
Dr. Lemle só vai falar de novo como um homem verdadeiramente livre, no Rio de Janeiro, na sexta-feira, 4 de abril de 1941, no Grande Templo Israelita da Rua Tenente Possolo. E como Rabino de sua própria sinagoga, que refletia sua tradição liberal, sua aspirações comunitárias e suas convicções espirituais, somente com a fundação da ARI, em 13 de janeiro de 1942.