Meu amigo, o rabino Dr. Henrique Lemle

por Charles Steiman

Artigo para a revista Devarim nº 43 (dezembro de 2020)
publicada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI
Rio de Janeiro, dezembro de 2020

Dr. Lemle (segundo, da esquerda) integrou a delegação ao Congresso Judaico Mundial, de 27 de junho a 6 de julho de 1948, em Montreux, Suíça: “Seu espírito chalutsiano [pioneiro] de proximidade com Israel, que manteve aliás por toda a vida, tornou-se uma luz de esperança nas trevas da perspectiva nazista”

Em 1958, Dr. Lemle recebeu o título de Cidadão Carioca da Câmara Municipal do Rio de Janeiro em reconhecimento por sua contribuição às várias obras sociais da Cidade: “os seus ensinamentos, pela palavra e pelo exemplo, consagram uma figura excepcional, que deve ser recolhida na história do Judaísmo”

Dr. Lemle era conhecido como um excepcional orador e “concentrou seu trabalho na propagação da mensagem do Judaísmo liberal, com acolhimento de novos grupos de origem, e menos nas separações étnicas”

Não conheci Dr. Lemle. Eu tinha oito anos quando ele faleceu em 1978, e minha família não frequentava a sinagoga da ARI. Era aluno de um colégio comunista, aprendia iídish na escola, frequentava o Shomer Hatzair. Conhecia as histórias da Bíblia como relatos históricos e acontecimentos folclóricos. As festas eram oportunidades de reunir a família e comer os quitutes de receitas herdadas de um passado remoto na Europa Oriental. Deus ou religião nunca foram um grande tema.

Mas Dr. Lemle – assim teria me dirigido a ele, como todos os que gozaram da sua convivência – mudou minha vida! Ter acesso à filosofia e aos ideais do Judaísmo reformista através de seus líderes espirituais e laicos, dos congregantes e das atividades, ao me aproximar da ARI na década de 1980, me encantou.

O legado de Lemle – assim o chamo na minha intimidade de pesquisa – transcende seus contemporâneos e suas gerações. Aprisioná-lo nos seus anos de vida ou exclusivamente na sua atuação rabínica seria um equívoco irreparável para a história da presença dos judeus no Brasil e reduziria o seu papel no Judaísmo hoje.

A vida de Lemle não deve ser relatada como um fio contínuo de sofrimento; o sofrimento é inerente às situações pelas quais ele e muitos de seus contemporâneos passaram – segregação, aprisionamento, exílio. Mas cada etapa de sua vida sedimenta um estágio de sua visão, que ele incessantemente transformou em missão. A ARI é expressão concreta de sua visão comunitária e congregacional.

Em um documento do início de 1972, Lemle aborda os temas da liturgia como foram instituídos na fundação da ARI na década de 1940, que por sua vez eram herança da tradição do Judaísmo reformista alemão. Lemle, entretanto, corrobora os ajustes que foram feitos ao longo dos anos porque “a situação da vida moderna trouxe problemas técnicos com relação a certas determinações da tradição. Não nos podemos enganar sobre o fato de que a grande maioria de nossos congregantes usam condução em Shabat. A nossa orientação ficou assim determinada: tudo que contribuir à verdadeira beleza do Shabat, Oneg Shabat, terá que ser admitido.” E enfatiza, “nós não temos outra orientação senão esta: o que nos inspire para Kidush Hachaim, a santificação da vida, a santificação de nossos sentimentos e a santificação de nosso relacionamento com os outros – este é o dia do Shabat. E assim conseguimos também aquilo que parece ao ser humano moderno tão difícil, o relacionamento mais pessoal com aquilo que é a Ordem Suprema, com o Ser Supremo, com Deus.” Essa postura contundente é o que torna tão natural e indiscutível, nestes tempos desafiadores de pandemia, congregarmo-nos através das tecnologias disponíveis.

A nossa orientação ficou assim determinada: tudo que contribuir à verdadeira beleza do Shabat, Oneg Shabat, terá que ser admitido

Lemle nasceu em 30 de outubro de 1909. No seu pequeno vilarejo Fischach, no sul da Alemanha, Lemle presenciava a chegada dos prestamistas e caixeiros viajantes judeus da Europa Oriental falando iídish e trazendo bugigangas e muitas notícias e novidades, não as de jornais, mas as sociais: listas de moças solteiras, ofertas e demandas, falecimentos, os bastidores. Em um universo de aproximadamente 500 mil judeus alemães, no início da década de 1930 havia cerca de 50 mil judeus poloneses vivendo em território alemão.

Ao chegar ao Brasil em dezembro de 1940, Lemle se deparou com uma comunidade judaica ashkenazi predominantemente da Europa Oriental: poloneses, russos, lituanos. Agora eram esses a maioria! Ele fez disso um incentivo à sua missão e não um obstáculo: aprendeu iídish! Concentrou seu trabalho na propagação da mensagem do Judaísmo liberal, com acolhimento de novos grupos de origem, e menos nas separações étnicas. Além de fortes laços de amizade com judeus do Leste europeu, foi também entre os judeus marroquinos e portugueses, já estabelecidos e integrados, que Lemle encontrou os interlocutores com seu país de exílio.

Em seu livro O Drama Judaico, de 1944, definido à época como o primeiro livro escrito no Brasil por um judeu sobre os judeus, Lemle manifesta gratidão: “Já há várias gerações, florescem, no Centro e no Norte do país, congregações de brasileiros israelitas, imperturbados na observação da sua religião. Estes filhos do Brasil alcançaram posições respeitadas na sociedade e na economia brasileiras, ao mesmo tempo que se destacaram por sua lealdade à fé israelita. Fizeram, desta maneira visível, mais um traço do caráter verdadeiramente democrático deste país; a fidelidade à religião judaica não os impediu em nada de serem classificados entre os filhos mais patrióticos do Brasil.”

Lemle casou-se em maio de 1934 com sua prima, Margot Rosenfeld – as mães eram irmãs. O pai de Margot pode ter sido uma das duas primeiras vítimas fatais do regime nacional-socialista. Em março de 1933, quatro jovens foram espancados em Creglingen, dois deles morreram. Segundo o Prof. Dr. Rupp da Universidade de Würzburg, se “houvesse uma lista de nomes dos mais de seis milhões de judeus assassinados, Hermann Stern e Arnold Rosenfeld figurariam no topo como as primeiras vítimas da Shoá”.

Lemle foi investido como rabino no púlpito da comunidade de Mannheim, em 1˚ de abril de 1933. Ninguém poderia ter previsto, ao marcar a data festiva da sua posse, que este seria um dia trágico para os judeus na Alemanha: o dia do boicote aos consultórios, escritórios e estabelecimentos de judeus.

Sua atuação em Mannheim foi brilhante e notória. O jovem Rabino Dr. Heinrich Lemle, como ainda se chamava antes de mudar para Henrique no Brasil, descreve em um currículo de 1938: “alguns meses depois visitou-me o Rabino Dr. Caesar Seligmann e me convidou, em nome da Diretoria da comunidade de Frankfurt, a vir para essa grande e tradicional comunidade como rabino. Foi-me oferecida a oportunidade de experimentar algo inusitado. Eu deveria atuar diretamente com jovens como o primeiro Rabino para a Juventude. A juventude judaica daquela época vivia o seu ser judeu como um empecilho para todos os seus planos de futuro.” Ele assume o púlpito como Rabino para a Juventude em Frankfurt, em junho de 1934.

Lemle lista entre seus afazeres, “aulas, aconselhamento, planejamento profissional, liderança dos grupos juvenis e de escoteiros, aconselhamento para emigração, aconselhamento para pais e cursos para mães.” Por trás desta lista de tarefas está a mais difícil de sua carreira: além de seu trabalho no púlpito e nas aulas, Lemle precisava aconselhar famílias a se separarem, pais a abrirem mão de seus filhos e deixá-los ir como única forma de salvá-los, jovens a abandonarem os sonhos de uma carreira profissional ou acadêmica nas renomadas universidades alemães e um futuro de títulos e honras, para aprenderem a manejar tratores e trabalhar a terra para uma possível imigração para a Palestina.

Às vezes desejo poder ouvir suas palavras: aqui, sem dúvida, extremamente necessárias

O empenho de Lemle não foi em vão. Além do êxito vivenciado pessoalmente na ARI até seu falecimento em 1978, ele pode recolher ao longo da vida provas reais de sua obra. Em março de 1945 é publicada, no Boletim da ARI, uma carta [aqui resumida] que recebeu de um soldado diretamente da frente de combate:

“Querido Dr. Lemle: O Sr. ficará surpreso ao ter notícias da frente ocidental e não creio que se lembre imediatamente de mim. Frequentei o seu curso de Bar Mitsvá, em 1937. Há pouco, li sobre o Sr. no “Aufbau” [jornal sobre sobreviventes e exilados]. Vejo que o Sr. continua, no Brasil, uma atividade que há tanto tempo começou. Às vezes desejo poder ouvir suas palavras: aqui, sem dúvida, extremamente necessárias. Em 1943, me alistei no Exército Americano. Estava ansioso por entrar em combate e obtive bastante do que queria, quando desembarquei nas praias da Normandia logo após a invasão. Aprendi a viver num buraco, sempre à sombra da morte, cujos olhos duros eu fitei mais de uma vez. A guerra é uma coisa horrível; aprendi a odiá-la e mais ainda os nazistas por causa dela. Cordialmente, Private Fred Karfiol”. Fred morreu nos Estados Unidos, aos 66 anos, em dezembro de 1990.

Que impulso formidável esse jovem soldado prestou ao ânimo de Lemle e aos associados leitores dos boletins! Sobretudo nos anos em que o destino do povo judeu ainda estava incerto e os exilados só tinham acesso a notícias esparsas e desesperadas através daqueles que aqui conseguiram aportar.

Em 1935, com a promulgação das leis racistas na Alemanha, o cerco se fechava. O espaço de convivência, ou até mesmo de sobrevivência social dos judeus, era estrangulado gradativamente com proibições, segregação e censura. Para o judeu alemão que tinha uma vida cotidiana integrada, um cidadão que se orgulhara ou talvez ainda se orgulhasse de pertencer àquela grande nação, a mensagem era clara: você não é um de nós. Você é der Jude, o judeu.

Aos dirigentes das comunidades judaicas nos seus últimos estertores, administrando um contingente sob o choque das novas circunstâncias e, em especial, aos que trabalhavam com a juventude, aquela era uma época de atuação igualmente austera e sensível. O trabalho de Lemle com a juventude na e da ARI, seu rigor absoluto com a oferta de atividades e a inclusão dos jovens nas esferas de liderança comunitária não eram apenas um valor judaico da continuidade, do grande elo das gerações. Era uma questão séria de sobrevivência. Naquele momento na Alemanha, os jovens eram a última chance de salvar o Judaísmo europeu e, para isso, deveriam ser enviados para o futuro como numa cápsula do tempo.

“A evolução histórica do atletismo judaico e do esporte em Frankfurt am Main é interessante porque nela se espelha uma época de extrema resistência e profundos problemas, que foram superados de forma bem-sucedida através de empenho pessoal e determinação”, relembra Richard Blum em 1977 em seu livro sobre o grupo Bar-Kochba, uma agremiação atlética do Macabi da Alemanha. Não resta dúvida que Lemle estava entre esses homens e mulheres que se empenharam pessoalmente. E assim como nos anos de 1934 e 1935, a comunidade judaica de Frankfurt realizou seus próprios jogos olímpicos em 1936. Desta vez, com especial significado, pois dava aos desprezados do esporte nacional a chance de se exibir e disputar. Em nota que relatou sobre este grande evento no Boletim da comunidade de Frankfurt de janeiro de 1937 lê-se: “Durante a entrada dos atletas para a abertura dos terceiros Jogos Atléticos Internacionais Macabeus no hipódromo de Frankfurt em 29 de novembro de 1936, o Rabino Dr. Lemle enfatizou em seu discurso que as palavras, em hebraico, para Aufmarsch e Aufruf têm a mesma raiz. Assim, surge da energia vital e vibrante uma força de congraçamento.“ Tudo me leva a crer que estas duas palavras, Aufmarsch – que aqui significa desfile – e Aufruf – chamamento, convocação –, pelo uso do prefixo Auf, que em alemão indica movimento ascendente, referiam-se à palavra hebraica aliá, usada para imigração para Israel.

Mais cedo em 1936, em 12 de janeiro, no necrológio a um membro da comunidade de Frankfurt, Hermann Schwarz, no novo cemitério judaico da cidade, Lemle já divulga a ideia da imigração, de fazer aliá, sem usar as palavras imigração, Palestina, Israel ou outras relacionadas ao tema. Era uma época de extrema observação e suspeição. Ele ressalta em seu discurso: “Trágico nos parece que, em sua hora derradeira, seus filhos estão distantes naquela outra terra e lá choram por ele. Talvez amenize um pouco a tragédia saber que para ele houve a última e autêntica alegria judaica que pais de família podem vivenciar. Enquanto aqui ele sofria em sua última estação de dor, enquanto aqui preocupações amargas o consumiam – estava sendo fundada lá, na outra terra, uma nova vida, um novo futuro para seus filhos, no qual ele mesmo vai sobreviver. A última carta de lá pode ter sido o motivo de sua última alegria na vida. Assim, constroem-se pontes de lá para cá, da terra da vida e da terra do futuro das novas gerações até o lugar de descanso eterno do pai imortalizado.”

1937 é conhecido como um ano relativamente calmo, sem grandes efemérides por parte do governo nacional-socialista. As leis racistas já haviam sido implantadas em 1935, os jogos olímpicos de 1936 já haviam exposto ao mundo os traços de caráter do governo hitlerista. Aos olhos da história, 1937 foi um ano de acomodação e adensamento: a infraestrutura da guerra vinha sendo implantada longe dos olhos da opinião pública, a ideologia nacional-socialista era condensada e quem podia, ainda, tratava de ir embora. Ou não! O governo não deixava muito claro quais seriam os próximos passos. As grandes potências mundiais ainda tinham uma crença ingênua ou uma política de olhar para o outro lado, e ignoraram com consciência ou cautela as movimentações dentro do Reich.

Margot Lemle relata em suas memórias sobre uma visita do casal à Palestina em 1937, para sondar a possibilidade de estabelecer-se lá. Duas referências a esta visita à Palestina foram publicadas no boletim da comunidade de Frankfurt: uma palestra em dezembro de 1937 e outra em janeiro de 1938. Aqui Lemle, aos 28 anos, já se revela um visionário e não um mero observador: “a apresentação ideológica da noite foi feita pelo Rabino Dr. H. Lemle sobre Pobre Terra Prometida?, em que ele chega à conclusão de que, na Palestina, reencontramos de forma concentrada e exacerbada todos os conflitos e problemas da Europa e da América. São as mesmas doenças e choques que todos vivenciam. A Palestina não é uma pobre Terra Prometida, mas muito mais uma terra de contrastes, de contrastes acirrados, uma terra de encontros e de sínteses.”

Em pouco tempo ele havia conquistado jovens e adultos, com sua voz suave e simpática, com palavras de sabedoria, confiança e entusiasmo

Na brochura de 1979 Em Memória ao Grão-Rabino Dr. Henrique Lemle, o publicista Ernesto Strauss revela uma lembrança de sua infância: “Meu irmão e eu estávamos sentados nos degraus de mármore da majestosa sinagoga de Frankfurt, que todo Erev Shabat ficava lotada. Entre os rabinos havia uma grande atração, o recém-contratado Rabino Dr. Lemle z’l, no início de sua carreira, como Rabino para a Juventude. Em pouco tempo ele havia conquistado jovens e adultos, com sua voz suave e simpática, com palavras de sabedoria, confiança e entusiasmo, sempre dentro daquilo que o tempo de então permitia. Uma destas sextas-feiras ficou gravada em nossa memória de meninos de aproximadamente 10 anos. O Rabino Lemle havia retornado de uma viagem a Israel. Com entusiasmo, ele rejubilava com a visita à Terra Prometida. Israel seria a solução para toda a desgraça que já se delineava aos remanescentes [na Alemanha]. Seu espírito chalutsiano [pioneiro] de proximidade com Israel, que manteve aliás por toda a vida, tornou-se aos silenciosos ouvintes uma luz de esperança nas trevas da perspectiva nazista, que apresentava sombras cada vez mais obscuras.”

Nessa mesma brochura, Austregésilo de Athayde despede-se do amigo Rabino, exaltando que “os seus livros, as suas prédicas, os seus ensinamentos, pela palavra e pelo exemplo, consagram uma figura excepcional, que deve ser recolhida na história do Judaísmo como uma manifestação da Presença Divina em nossos tempos.”

Tanto as palavras de Austregésilo de Athayde como as de Ernesto Strauss confirmam o compromisso existencial de Lemle com sua nova pátria, o Brasil, e seu comprometimento transcendental com sua pátria ancestral, Israel. Talvez a relação de Lemle com os profetas vá além da admiração, quiçá uma relação de identificação – profetas vêm luz na escuridão.