Você pode reunir pessoas em torno de uma mesa em Erev (véspera de) Pessach, pode colocar um prato com todos os alimentos simbólicos no centro da mesa, ler da Hagadá (narrativa), realizar todo o ritual, recitar as orações e até ter as comidas da festa para o jantar. Se não estiverem sentados ali judeus e judias, não é um Seder (refeição ritual), é uma encenação. Isso vale para o cumprimento de diversos rituais ou comemorações dentro da nação israelita: é pelo indivíduo ou pela comunidade que esses eventos adquirem seu significado fundamental.
A Shoá foi, por definição, o aniquilamento sistemático de judeus. Não há outra denominação. Há outras vítimas, há! Mas só há um Holocausto.
O estabelecimento da data em que o Holocausto deveria ser recordado em Israel gerou acirrada discussão na Knesset (Parlamento), em 1951. Até então, em 1949 e 1950, o Iom Hashoá (Dia do Holocausto) era comemorado em 10 do mês hebraico de Tevet, que já é um dia de luto, por determinação ou influência das alas mais tradicionais da Knesset. Os sobreviventes e heróis do Gueto de Varsóvia pleiteavam que deveria ser no dia do Levante, em 19 de abril. Mas nessa data, em 1943, foi Erev Pessach. De um lado, as correntes mais ortodoxas queriam tirar a data do mês hebraico de Nissan, pois é o mês festivo de Pessach, e do outro, deputados insistiam que deveria ser no Dia do Levante do Gueto de Varsóvia.
É na noite de Pessach, em 19 de abril de 1943, que a resistência judaica atinge seu ponto alto. Exatamente na noite do primeiro Seder (refeição ritual), quando aqueles judeus e judias deveriam estar sentados à mesa com suas famílias, eles estavam entocados em buracos escuros, exaustos e famintos, com medo e raiva.
Em 12 de abril de 1951, prevaleceu a ponderação entre as duas posições: Iom Hashoá deveria ser em um dia que caísse depois de Pessach, mas antes de Iom Haatsmaut (Dia da Independência do moderno Estado de Israel), e nunca em Shabat. A história nos registra a data acordada: 27 de Nissan! Oito anos depois, em 1959, foi acrescido guevurá (em hebraico, heroísmo) ao nome, em lembrança daqueles que lutaram bravamente contra o extermínio dos habitantes do Gueto, e decretado feriado nacional. Nascia o Iom Hashoá Vehaguevurá – Dia do Holocausto e do Heroísmo, como comemoramos atualmente.
Iom Hashoá só faz realmente sentido se anteceder Iom Haatsmaut. Apesar de a Shoá não ser o que ocasiona a fundação do moderno Estado de Israel, Iom Haatsmaut, em 5 do mês hebraico de Iar, só atinge seu significado pleno como data nacional, se a recordação da Shoá for anterior à celebração da Independência. Iom Haatsmaut não é um efeito da Shoá, mas um posicionamento firme em resposta à Shoá.
Esses 49 dias entre as festas de Pessach e Shavuot, em que nos encontramos agora, têm tal preponderância na identidade dos israelitas como nação, que nós os contamos dia a dia, com o Ômer (referência à oferta de trigo no Templo de Jerusalém). Nesses 49 dias, saímos do Egito em Pessach, recordamos o Holocausto e enaltecemos a bravura dos heróis do Gueto, honramos com solenidade aqueles que lutaram e lutam por uma nação livre em Iom Hazikaron (Dia da Recordação), explodimos em alegria pela soberania do povo israelita em Iom Haatsmaut, e, em Shavuot, celebramos como povo nossa decisão de acolher a Torá. Nesses 49 dias, fica explícito que a cronicidade histórica, especialmente da Torá, é inexpressiva para amalgamar a nação israelita.
Somos nós que damos propósito à celebração de Pessach, fomos nós, como povo, que escolhemos aceitar a Torá. A Memória do Holocausto só atinge seu significado pleno quando nós israelitas nos dedicamos a ela.
Não vamos conseguir e nem devemos fazer isso sozinhos, é claro. Essa luta deve ser de todos os democratas e de todos os humanistas para além das diferenças políticas, sociais, religiosas ou étnicas. E o rigor intelectual, mas sobretudo ético, exige que estendamos essa luta a todas as formas de racismo e negacionismo.
Contudo, quem dá alma, somos nós. Assim como cada um de nós deve sentir-se como libertado do Egito, também cada um de nós deve sentir-se como se tivesse sido vítima do Holocausto, protagonista da bravura, e agraciado com a liberação dos campos de concentração e extermínio, e com a sobrevivência.
Eu me sinto abandonado e desolado a cada 28 de outubro, quando em 1938 os judeus poloneses que viviam na Alemanha foram expulsos e imprensados na fronteira da Polônia, que também não os recebeu como cidadãos. Eu fico chocado e triste a cada 10 de maio, quando em 1933 as fogueiras arderam com livros judaicos ou de autores judeus arrancados de bibliotecas. Eu me sinto impotente a cada 9 de novembro, quando em 1938 pedras foram arremessadas e sinagogas queimadas na Alemanha. Sinto como se eu mesmo tivesse sido encurralado numa rua e espancado, ou confinado num gueto, ou transportado para um campo; como se eu mesmo tivesse tido a cabeça raspada e passado frio, fome e humilhação numa daquelas barracas.
Sinto como se eu mesmo tivesse sido encurralado numa rua e espancado, ou confinado num gueto, ou transportado para um campo; como se eu mesmo tivesse tido a cabeça raspada e passado frio, fome e humilhação numa daquelas barracas.
E me colocando naquele lugar, pois aquele lugar também é meu, homenageio os irmãos do meu avô, seus primos, seus pais. Parentes de quem nunca sequer ouvi falar. E, também, seus vizinhos, amigos de sinagoga, de perto e de longe, tal como nós, vocês e eu! Pessoas que foram escravizadas em fábricas, desonradas, escorraçadas e, por fim, assassinadas.
No meu trabalho, entretanto, não pesquiso ou estudo o Holocausto, tampouco seus efeitos. Eu me dedico àqueles que escaparam do Holocausto, que conseguiram driblar sua sentença fatal e que tiveram a sorte de poder reconstruir suas vidas. É fato que capitalizaram suas energias e recursos para si mesmos e para aqueles de quem estavam próximos no pós-guerra — os poupados e os sobreviventes. Mas somos testemunhas de que seus esforços foram dedicados à memória daqueles que não estavam mais aqui. Família, amigos, comunidade, cidades e vilas. Os sobreviventes espalhados pelo mundo e na nova pátria independente tomaram para si a missão moral de “não deixar esquecer”, pois “não esquecer” não teria sido suficiente.
Não acredito em coincidências. Levo fé no destino, talvez no acaso. Coincidência é como coexistência e cooperação: nelas estão um desejo manifesto ou uma intenção latente. Não creio que, em 1951, os deputados da Knesset, homens e mulheres que certamente tinham o calendário judaico dando o ritmo das suas novas vidas na nova pátria, não tenham levado em consideração a passagem da Torá que seria lida na semana de 27 de Nissan. Creio, sim, que tenham encontrado em Acharêi Mot (após a morte, em hebraico), o pano de fundo apropriado para recordar aqueles que foram mortos.
Todos seriam lembrados igualmente, sem distinção do grau em que se opuseram ao regime e à perseguição. Pois diferente de outras situações na história do povo, os nazistas não deram aos israelitas qualquer alternativa ou saída, independente se observantes ou assimilados, se pobres ou ricos, se de direita ou de esquerda – independente de sua intenção, prática ou desejo. Nenhum israelita teve uma chance. Não somente os que corajosamente enfrentaram os oficiais nazistas seriam lembrados, mas todos por igual, pois nenhum israelita abandonou sua fé e todos cumpriram Kidush Hashem – não blasfemaram e mantiveram-se fiéis ao Deus de Israel. Santificaram assim o nome Dele, o nome inefável que só pode ser pronunciado no mais íntimo recinto do santuário, por um sacerdote, no dia mais santo, em Iom Kipur, como descrito na porção da Torá que lemos esta semana – Acharêi Mot.
Não me refiro ao dia da expiação bíblico, quando Aarão expiou por si, por sua família e pelo povo. Aqueles rituais de sacrifícios não encontram, há séculos, ressonância na liturgia judaica. Não dá para falar de bois, aspersão de sangue, sacrifícios animais, bacias de incenso ou sorteio de bodes no nosso contexto contemporâneo.
A expiação foi democratizada e cada um de nós deve ativamente, e não como espectador passivo do ritual sacerdotal bíblico, expiar pelas suas transgressões, intencionais ou não. Hoje, não abatemos animais, não temos um sumo sacerdote. Nossa liturgia nos reúne para juntos jejuarmos, orarmos, pedirmos perdão, nos reconciliarmos com a essência de uma vida ética e com sentido – não mais a vida pela vida, mas a vida para a vida.
No dia de hoje, além da reflexão no nosso estudo, proponho a recordação.Convido a todos que entrem no link https://www.illuminatethepast.org e acendam uma vela por alguém cuja vida tenha sido ceifada no Holocausto. Você pode assim honrar a memória de pessoas que não têm um familiar vivo para recordá-las. Recorde os seus e torne seu um desconhecido.