Nosso Rio, o Brasil, o mundo, nós mudamos nos últimos anos. Nossas relações familiares se expandiram, nossos relacionamentos se transformaram, nosso meio ambiente se transfigurou. A humanidade (ocidental) se permite um olhar mais tolerante e acolhedor em relação às minorias, aos costumes e às culturas. A todos queremos incluir, às vezes, desafiando nossa crença e nosso conhecimento acerca de nossa sociedade, que se cristalizaram ao longo de décadas, séculos ou milênios.
Mas será que somos hoje tão abertos assim, em contraponto ao mundo que nos foi legado? Nossa experiência do passado é a leitura de historiadores do que um dia foi realidade e aquilo que filtramos através de nosso olhar atual. Assim, nos constituímos homens e mulheres livres (Weltmensch), cidadãos e cidadãs conscientes (Freidenker), judeus e judias liberais.
O Renascimento e o Iluminismo nos obrigaram a ver o mundo com os olhos da razão. O véu das sensações, da magia, das superstições e crendices foi suspenso pela nova e ensolarada atitude de encarar a vida e renegado àqueles que consideramos ignorantes e obtusos. Nós, cosmopolitas e cidadãos do mundo, tomamos decisões baseadas no intelecto, e não no instinto. Domamos os sentimentos e a riqueza da subjetividade em favor de um mundo mais justo, igualitário e politicamente correto, mas que padece à secura da objetividade e do pragmatismo. As várias gradações de cinza(s) se perdem aos poucos nos domínios absolutos do branco e do preto.
A Torá, muito antes da Renascença, dá humanidade à esta criatura selvagem e indomável que é o homem. É certo que seu conteúdo é eterno e abraça inesgotável conhecimento acerca do homem. Mas exige que seja relido e interpretado. A Revelação é contínua assim como é (e para que seja) ininterrupta a permanência de nosso povo entre as criaturas.
Nos aproximamos da celebração de Purim. Uma escolha estética – um concurso de miss à moda antiga – eleva uma moça judia a consorte do homem mais poderoso da Pérsia. Nossa primeira e única rainha é adorada por seu rei, amada por seus súditos. A felicidade de Ester, entretanto, não nos é apresentada como completa; ela tem um segredo. Ela esconde da sociedade em que vive algo sobre sua identidade. Ela hesita em revelar-se; em sua visão de mundo e mediante os acontecimentos, ela poderia ser desmascarada.
O amor do filho de um rei por um jovem pastor, de ótima aparência e personalidade magnética, muda o curso de nossa história. Jonatan, filho do rei Saul, venera David. Seus sentimentos não são velados: “…a alma de Jonatan se ligou à alma de David, e Jonatan o amou como à sua própria alma.” (I Samuel 18:1). E David não rejeita este amor, David não se abomina deste tão intenso sentimento, em especial quando Jonatan é morto em batalha: “…estou angustiado por ti, meu irmão Jonatan; como me eras querido! O teu amor por mim me era mais maravilhoso do que o amor das mulheres.” (II Samuel 1:26) Ele o acolhe, o retribui, em versos, em música, em atitudes.
Em parte alguma de nossas fontes o amor entre dois humanos é descrito de forma tão contundente e forte como o amor de Jonatan por David e o amor de Ruth por Naomi: “– e Ruth disse: Não me obrigues a abandonar-te, a desistir de te acompanhar, pois aonde fores eu irei também; onde te alojares ficarei também; teu povo será meu povo e teu Deus será meu Deus! Onde pereceres morrerei eu também e lá serei enterrada. E possa o Eterno agir para comigo de tal forma que somente com a morte sejamos separadas!” (Livro de Ruth 1: 16–17).
Amores incondicionais entre pessoas do mesmo gênero, que desafiam nossa mente castigada pela razão e pelos desafios cotidianos e mundanos, e que ameaçam tabus e estruturas sociais pré-concebidas são evidenciados em nossa literatura. Não se trata de sexo – não por não havê-lo; mas aí não repousa a mensagem. Os elementos estão ali disponíveis para serem vistos deste ou daquele jeito. Somos e fomos articulados o suficiente para torcer histórias e interpretá-las ao sabor dos acontecimentos e interesses.
Amor, seja ele baseado em homo ou heteroafetividade, não precisa ser justificado ou embasado ou pormenorizado. Ele existe como tal e deve ser considerado e respeitado. Acaso usamos nossas fontes para apedrejar com palavras e olhares frios e de desprezo aqueles que procuram o caminho do amor em suas vidas? Espero que não, creio que não. Não podemos ignorar o que acontece ao nosso redor – em nosso mundo, em nossa cidade, em nossas famílias – e nos fecharmos para aqueles que procuram em nosso meio a possibilidade de serem felizes e desfrutar seu amor terreno.
Ester ousou sair do armário. Que pavor sentiu esta mulher! Seu maior medo tornou-se a salvação: somente por sua bravura e ao lançar-se a um destino incerto, ela nos salvou. Uma decisão baseada no amor. O intenso e declarado amor de Jonatan levou ao trono nosso grande rei. O amor mudou o curso de nossa história e o destino de nosso povo. O amor de uma não-judia por sua sogra fomenta o caminho daqueles que têm ou recebem o Judaísmo em seus corações.
O mundo mudou, o Brasil mudou, o Rio mudou. E nossa comunidade? Ainda nos restringimos a agir segundo padrões determinados por outros, categorizando o amor em qual pode ocorrer e qual não pode? Ou vamos encarar o desafio das novas gerações e escolher o caminho do amor em uma cidade que inspira o amor, cuja beleza transcende gênero, número e grau.