O drama dos museus e a dualidade da Memória

por Charles Steiman

Artigo para a revista Devarim nº 47 (Abril 2023)
editada pela Associação Religiosa Israelita
Rio de Janeiro, abril 2023

Porta-etrog, Israel, prov. meados do séc. XX

Boneco em plástico com roupa da seleção brasileira de futebol, camisa 11, na embalagem original de papelão lacrada, 2014. Coleção do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro

O Museu de Israel é a maior instituição cultural do Estado de Israel e um dos principais museus de belas artes e arqueologia internacionalmente. Até o momento, existem quase 500 mil objetos que cobrem toda a gama da cultura material mundial.

Bolsa para talit, Argélia, segunda metade do séc. 19. Utilizada há quatro gerações em uma mesma família por ocasião da Bar Mitzvá, quando o menino recebe seu primeiro talit. Foto: Guilherme Rozembaum

O aspecto espiritual de nossa existência está fundamentado em uma conexão ancestral, através de um passado compartilhado e um presente imaterial, invocado e outorgado por um ser sobrenatural. A expressão “nosso Deus e de nossos patriarcas e nossas matriarcas” revela essa conexão atemporal e contínua, com origem e sem fim. 

A espiritualidade, como conhecida ou almejada pelo ser humano, independe de nossa engenhosidade. O mundo material, entretanto, é a manifestação elementar da habilidade humana de criar e experimentar, de expressar-se e relacionar-se com seu entorno e seus semelhantes. A produção de um parafuso ou uma pintura é decorrência de nossa capacidade particular de observar, compreender e interagir.

Os objetos de uso cerimonial ou ritual encontram-se na tangente desses dois mundos, o espiritual e o material. Eles são nossos lembretes de uma camada intocável da existência. 

No Judaísmo, esses objetos não são intrinsicamente sagrados. Definitivamente, não são sagrados. Até mesmo as Tábuas da Lei, objetos advindos diretamente de Deus, foram quebradas por Moisés ao descer do Monte Sinai pela primeira vez e ver o povo adorando o bezerro de ouro. O relato bíblico, mesmo perante esse momento dramático e ameaçador, não preserva as Tábuas, e derrete o bezerro!

O texto bíblico está repleto de minúcias descritivas acerca de construções, utensílios, comportamentos, pureza de coisas e pessoas. Nada disso é condição ou manifestação de Deus, mas coloca o homem/a mulher na sintonia exata para reconhecer, honrar e se inserir na Criação Divina.

Tempo x espaço

O calendário judaico é mais do que uma organização cronológica de festas e eventos. Ele foi concebido como uma estrutura de interação com o mundo. O tempo no Judaísmo é sagrado: santificamos o Shabat, o sétimo dia, um período e não um lugar.

E o tempo é santificado pelo verbo, que exprime ou provoca uma ação num determinado momento. Pela palavra é executada a Criação Divina. O verbo — invocação da espiritualidade — diferencia os tempos. E os tempos marcam espaços.

É irrefutável a centralidade de Tsion e Jerusalém para o povo israelita, mesmo que associada a um lugar específico. Érets Israel não é um veículo para alcançar a dimensão espiritual, mas o elemento espiritual em si, indicado por Deus e fundamental para a existência do Judaísmo. Assim como corpo e alma são inseparáveis, assim o são Israel e seu povo. Através dos séculos de diáspora, não houve coletivamente um abandono de Israel nem desassociação daquele lugar histórico, tanto na liturgia quanto no cotidiano do israelita. 

Aqui também é enfatizado o tempo: encerramos o Seder de Pessach com “leshaná habaá birushaláim” (no ano que vem em Jerusalém) — somos específicos com o ano vindouro, um desejo/promessa renovado. Ao tempo nos agarramos e escalamos os acontecimentos. E, para isso, nos auxiliam os objetos que nos cercam.

Ação x intenção 

Nem o cálice nem o vinho são sagrados. São veículos usados pelo ser humano para reconhecer e exaltar em verbo (brachá) a Criação Divina.

O tabernáculo do deserto só é sagrado quando usado com o propósito santo, num tempo específico, que deve ser capturado pela ação humana de, naquele exato segundo, religar-se à Criação. Uma construção ou objeto só serão rituais se inseridos num contexto de santificação da Criação pelo verbo.

A materialidade serve ao ser humano na mesma medida em que o ser humano deve servir à espiritualidade. O cálice de material nobre distingue o homem. A qualidade do vinho e das uvas distingue o homem. A benção do Kidush santifica, naquele instante, a Criação. O caminho inverso não se confirma: a Criação existe independente da nobreza ou mesmo da existência do cálice ou do vinho.

O candelabro de oito braços que usamos na festa de Chanuká (chanukiá) não é santo nos oito dias de festa nem na vitrine ou prateleira onde o guardamos durante o ano. Nem o são as velas, o óleo, ou a luz que produzem. Mas unidos e acionados com o verbo das brachot, são ferramentas poderosas que nos assombram e encantam, que nos transportam.

Assim devemos encarar a beleza estética, a nobreza dos materiais e a habilidade e criatividade das mãos que conceberam tais objetos: são lembretes no nosso mundo material de uma ligação espiritual com a Criação. São meios e não fim. São nossa forma humana e única de valorizar um momento com os elementos que nos são disponíveis no mundo. 

O próprio rolo de pergaminho que suporta a Lei Divina — Sefer Torá — perde sua função no uso ritual quando o verbo é maculado, quando as letras que transportam o códex máximo são corrompidas. O rolo se torna impróprio (passul) e não serve mais ao seu propósito santo. A mácula é material, mas o dano é de caráter espiritual.

O drama dos museus

Museus vivem há algumas décadas sua puberdade, tomados por uma intensa e quase incontrolável força transformadora de abandonar sua forma anterior de acumular, empilhar, exibir, para abraçar sua missão catalisadora de fomentar transformações no pensamento e, assim, na sociedade.

Museus são espaços de mobilização. A materialidade de suas coleções, além de impressionar, informar e educar, deve despertar e provocar a alma humana à ação. 

A devolução aos seus países de origem de peças roubadas do mundo islâmico ou da África por colecionadores, na sua maioria europeus, não é apenas uma tentativa de quitar uma conta com o passado colonizador e extrativista. Essas peças perderam seu sentido para o visitante de um museu em uma capital europeia. A mera observação, tomada de conhecimento ou interesse pessoal por determinada civilização ou arte não constituem a Memória daquele país. São certamente parte de sua história, mas não são (ou não querem ser) componentes de sua identidade coletiva.

É fato que a mobilidade e mais fácil acesso a viagens contribuiu para a democratização de visitas aos países distantes. Também persiste o desejo de “consertar” a narrativa da História e, através desse processo, reestruturar a Memória. Não modificá-la ou apagá-la. 

Museus vão continuar reunindo objetos. E devem fazê-lo. O discurso de sua materialidade, entretanto, evoluiu. Mais do que nunca os museus devem ser estruturas permeáveis na sociedade. Até mesmo sua arquitetura, em sua maioria hoje arejada, transparente e “apalpável”, em contraponto a prédios neoclássicos, herméticos, distantes e dominantes na paisagem urbana, é reflexo dessa transformação, e não apenas moda ou estilo.

Em 2022, o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro (MHN) incluiu em sua coleção uma peça inédita: um porta-etrog doado pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro (ARI). Essa peça insere a imigração e a presença dos judeus na História do Brasil por intermédio da instituição responsável pela narrativa da constituição da nação brasileira.

Os processos de formação da Memória instrumentalizam um povo com elementos constituintes de sua identidade. A Memória transforma a identidade em algo flexível e permeável, porém robusto e indissolúvel.

Não é possível ou desejável dissociar nossos rituais de nossos objetos. E é também uma aspiração que invistamos recursos e esforços para que sejam esteticamente belos e em concordância com o estilo, tempo e lugar onde foram e são manufaturados. Esses objetos também devem estimular nossos sentidos, nos alegrar, emocionar. Eles são testemunhas de nossa história — por onde passamos, em que época vivemos, o quanto prósperos fomos, como nos dedicamos ao serviço da Torá e ao cumprimento de nossas mitsvot.

A destruição do Templo pelos babilônios e posteriormente pelos romanos, a tomada dos objetos do Templo de Jerusalém para Roma, como esculpida no Arco de Tito, a incineração de nossos livros e de nossas sinagogas no século 20, e muitas vezes antes na Idade Média, o roubo de nossas chanukiot, candelabros, copos de Kidush, objetos de uso na sinagoga e no lar — nada disso abalou o verbo. E toda vez que judeus se reerguem no rio da História, somos Memória e, pelo verbo, invocamos a santificação desse momento, com novos e reluzentes apetrechos.