Quando o horror se transforma em terror

por Charles Steiman

Artigo para a brochura pelos 80 anos da Noite dos Vidros Quebrados (Kristallnacht)
editada por Heritage & History (Zurique) e pela Associação Religiosa Israelita (Rio de Janeiro)
Rio de Janeiro, 2018

Grande Sinagoga no Westend em Frankfurt am Main, onde o Rabino-fundador da ARI, Dr. Henrique Lemle, atuou como Rabino para a Juventude de junho de 1934 até sua prisão em 10 de novembro de 1938. Única das quatro grandes sinagogas em Frankfurt que escapou gravemente danificada, foi rededicada em 1950 após reformas provisórias e, de 1989 a 1994, restaurada fielmente à sua construção original. Foto: autor desconhecido, prov. 1935-1936, Acervo Histórico da ARI

A Grande Sinagoga no Westend em Frankfurt/Main, outubro 2022. Inaugurada em 1910

A grande sinagoga em Westend em Frankfurt/Main em outubro de 2022 após obras de restauração ao seu estado original. Inaugurada em 1910

A Reichspogromnacht, também denominada ingenuamente de Kristallnacht – A Noite dos Cristais –, marca para os judeus alemães a transformação do horror em terror e o início da violência física ostensiva e sistemática. Até então, a perseguição aos judeus acontecia geralmente pela forma da coerção e da exclusão através de leis racistas e segregacionistas. A partir daí, a integridade física da população judaica fica oficialmente ameaçada, e tanto o desejo quanto a necessidade de emigração atingem seu grau de desespero: a corrida para fora da Alemanha torna-se uma questão urgente de sobrevivência.

Esta noite simboliza o fim do Judaísmo alemão, como se conhecia até então – sinagogas são queimadas, milhares de homens judeus são presos e levados para campos de concentração, seus recursos para sobrevivência são extintos, seu meio social é suprimido. Aqueles que podem, por conhecimento ou possibilidade financeira, refugiam-se em países próximos ou distantes, como o Brasil. Os que ficam são testemunhas da institucionalização da ideologia antissemita.

Esta noite, que marca os 80 anos daquela noite de terror, nos faz refletir sobre o abismo estreito entre ficar e partir, entre o poder da identidade nacional e o abandono das estruturas familiares, entre o perene desejo humano pela permanência e a imposição de mudanças. À medida que o regime nacional- socialista constringia os judeus à convivência isolada da sociedade alemã, observa-se, em contraponto, uma reconexão com a identidade comunitária e a consolidação de valores judaicos talvez já outrora abandonados.

Os associados da ARI são hoje, por nascimento ou legado ideológico, os herdeiros históricos e responsáveis pela recordação do 9 de novembro. A ARI existe como Congregação Liberal no Rio de Janeiro por ter o regime nacional-socialista estabelecido as leis de discriminação e racismo na Alemanha, e oficializado o terror com o fatídico pogrom (perseguição virulenta brutal, espontânea ou organizada) daquela noite.

Figura exemplar deste período é o Rabino-Fundador da ARI, Dr. Henrique Lemle. Como outros milhares de homens judeus, Lemle foi preso e deportado para o campo de concentração de Buchenwald no dia seguinte à Reichspogromnacht. Em suas Memórias, sua esposa Margot escreve que “o projeto de emigrar para o Brasil já estava em fase bem adiantada quando, no dia 10 de novembro de 1938, às 7 horas da manhã, o Rabino Heinrich Lemle foi levado pelos homens da Gestapo de seu apartamento na Miquelstrasse 3, 1o andar, para a Festhalle de Frankfurt”, um grande edifício de reunião para feiras e festas, onde cerca de 3.000 homens judeus foram detidos para interrogatório e deportação para campos de concentração.

A insipiente comunidade de judeus alemães da Capital Federal do Brasil teria que esperar. A ARI foi a última congregação jeke (denominção dada aos judeus alemães) a ser fundada no Brasil: a primeira foi a SIBRA, no Rio Grande do Sul, em 1934, seguida da CIP, em São Paulo, em 1936. Após exílio de dois anos na Inglaterra, Lemle pode emigrar para o Brasil em dezembro de 1940 para liderar a fundação da Associação Religiosa Israelita, em 1942.

Preocupações similares

Entre os dias 11 e 14 de outubro de 1942, reuniram-se em São Paulo os dois rabinos das duas congregações liberais alemães próximas: da Congregação Israelita Paulista, Rabino Dr. Prof. Fritz Pinkuss, e da ARI, Rabino Dr. Henrique Lemle. A proximidade entre Lemle e Pinkuss ia além de seu exílio no Brasil, refugiados do regime hitlerista. Ambos foram detidos em Buchenwald após o pogrom de 9 de novembro e tinham sido estudantes no Seminário Rabínico em Breslau, hoje Wroclaw na Polônia. Lemle usou, como uma fonte para sua tese de doutorado na Universidade de Würzburg em 1932 “Mendelssohn e a tolerância”, um trabalho anterior do Rabino Dr. Pinkuss de 1929 intitulado “A relação de Mendelssohn com a filosofia inglesa”.

Nessa reunião decidiu-se as linhas mestras de funcionamento conjunto entre as duas instituições irmãs. O terceiro item da ata da reunião declara que “por ocasião do dia 9 de novembro ambas Congregações celebrarão neste ano um serviço especial comemorativo na manhã do dia 8 de novembro. Em ambas Sinagogas será lido o manifesto dos dois Rabinos. Também nos anos vindouros continuará a promoção destes serviços.”

Vale lembrar que, em 1942, a guerra e o regime nacional-socialista estavam em seu auge. Lemle e Pinkuss, assim como seus correligionários, estavam conscientes do iminente perigo e o que isso poderia ter como efeito na vida no exílio, onde muitos não tinham conhecimento pleno do destino de familiares que ainda estavam na Europa ou mesmo do próprio destino na nova terra. Ainda em fevereiro de 1942, o escritor austríaco Stefan Zweig e sua esposa Lotte tiraram a própria vida em sua casa em Petrópolis, em um gesto derradeiro de desesperança com o futuro nublado pela expansão do regime hitlerista e sua brutalidade.

Talvez por essas razões e agora já mais familiarizados com a vida judaica no Brasil, mas acostumados com a organização da comunidade judaica na Alemanha, Lemle e Pinkuss recomendam, no item 15 da ata desta reunião, “a fundação de uma federação das congregações israelitas do Brasil com o fim de satisfazer as tarefas espirituais, culturais, organizatórias e de representação”. Além de líder irrestrito dos associados da ARI, Lemle foi um visionário e um importante articulador da existência plena dos judeus no Brasil.

Desnorteados e assustados, muitos tentavam voltar à Alemanha, presos entre as polícias de fronteira alemã e polonesa

Operação Polônia

O pogrom de 9 de novembro tem ligação intrínseca com a população de judeus poloneses no território do Deutsches Reich, que se estendia do rio Reno, no Oeste, até regiões que hoje se encontram no território polonês.

No início do século XX, milhares de judeus poloneses migraram para a Alemanha e a Áustria em busca de uma vida melhor, e na esperança de escapar da pobreza e do antissemitismo no Leste europeu. Em 1938, havia aproximadamente 50.000 judeus poloneses na Alemanha e 20.000 na Áustria. Após a anexação da Áustria em março de 1938, o governo polonês temeu um retorno em massa de seus cidadãos judeus que viviam no exterior e promulgou uma lei que afetava os passaportes de poloneses que viviam fora do país há mais de cinco anos. Os cidadãos deveriam obter um selo especial de endosso em seus passaportes até 30 de outubro de 1938, um domingo, para mantê-los válidos. A falta do selo significava a perda da cidadania polonesa e, em consequência, o fechamento das fronteiras do país.

A partir de 27 de outubro, quinta-feira, o governo alemão decretou a deportação desses judeus “apátridas”. Durante essa Polenaktion (Operação Polônia), 17.000 judeus poloneses foram detidos e deportados por trem ou a pé até a fronteira da Alemanha com a Polônia. Em muitos casos, o governo deportou apenas homens, pois acreditava que as mulheres e as crianças encontrariam uma maneira de se unir a seus maridos e pais. Ao longo do caminho, muitos pereceram vítimas de terror ou doença; outros, em desespero, tiraram a própria vida. Na fronteira, os deportados eram obrigados a entregar ao governo alemão todas as suas posses, sendo-lhes permitido ficar com apenas dez Reichsmark.

Apenas um primeiro pequeno grupo foi admitido na Polônia, os demais foram recusados pelos guardas de fronteira poloneses. Desnorteados e assustados, muitos tentavam voltar à Alemanha, presos entre as polícias de fronteira alemã e polonesa. Quando finalmente o governo polonês permitiu sua entrada, os judeus foram alojados em várias cidades fronteiriças em uma bizarra “terra de ninguém”. Alimentos e cuidados médicos eram escassos. Milhares de judeus deslocados buscaram abrigo em estábulos e celeiros. Organizações judaicas na Polônia montaram campos de refugiados enquanto o governo polonês tentava fazer com que a Alemanha recolhesse de volta os judeus.

Em novembro de 1938, a Polônia deferiu a permanência dos judeus poloneses. Até agosto de 1939, todos já haviam partido das cidades fronteiriças. E em 1o de setembro, a Alemanha invadiu a Polônia. Começava então a Segunda Guerra Mundial.
O governo nacional-socialista afirmava que o pogrom de 9 de novembro foi uma retaliação espontânea da população alemã, indignada pelo assassinato de um diplomata alemão em Paris por Herschel Grynszpan, jovem judeu polonês que morava em Paris, que alegou ter agido para protestar contra a Polenaktion e a deportação de seus pais para a Polônia.
A Operação Polônia de outubro foi tão significativa quanto as bombas incendiárias de novembro. Pode- se afirmar que essa operação foi um precursor de detenções súbitas, perseguições, deportações, violência e confisco de propriedades.

Judenstempel

Em contraste com o ano de 1937, considerado um ano silencioso acerca da perseguição virulenta a judeus e discreto em relação a movimentos de preparação para uma guerra, 1938 foi barulhento e contundente, em especial no que diz respeito às resoluções da política externa alemã com seus países vizinhos. Neste ano, muitos países deixaram claro, em acordo ou não com a Alemanha, que judeus não eram bem-vindos em seus territórios para transitar ou se exilar.

em 5 de outubro de 1938, o governo alemão introduziu o Judenstempel – uma letra J vermelha carimbada em passaportes alemães que identificava o titular como judeu.

Diferente de outros países europeus, na Alemanha a integração secular dos judeus com a população e cultura local e, historicamente falando, a proximidade linguística foram, em diferentes épocas e por diferentes motivos, bênção e maldição – Ashkenaz significa, em hebraico, Alemanha; o idioma ídish nasceu como um socialeto naquela região, antes mesmo de existir o próprio país Alemanha.

Em 17 de agosto de 1938, o governo alemão obrigou seus cidadãos judeus a incluir, em seus nomes próprios, um nome esteriotipicamente judaico para distinguí-los: os homens deveriam incluir Israel e as mulheres, Sara.

Mais tarde, em 5 de outubro de 1938, o governo alemão introduziu o Judenstempel – uma letra J vermelha carimbada em passaportes alemães que identificava o titular como judeu. Em 7 de julho de 1941, também as capas dos passaportes viriam a ser carimbadas.

Com estas medidas, judeus alemães eram facilmente identificados nos postos de fronteira. Há estudos que sugerem a participação das autoridades suíças nesta decisão que, dada sua neutralidade e estabilidade política, era privilegiada como país de exílio ou trânsito. Com o J ficava a cargo do país receptor permitir a entrada do provável turista. A Suíça condicionou a entrada de judeus alemães à emissão de visto prévio pela representação suíça competente no país de origem ou residência. Além dos judeus alemães, essa medida atingia indiretamente os poloneses afetados pela Polenaktion e outros judeus que tentavam imigrar.

A invenção do Judenstempel foi atribuída inicialmente ao chefe da polícia de fronteira suíça. No entanto, estudos recentes atestam que o carimbo foi de fato introduzido em comum acordo entre Suíça e Alemanha, a partir de uma contraproposta das autoridades alemãs à exigência, pelo Conselho Federal Suíço, de visto para todos os seus cidadãos indiscriminadamente.

Em 1938, sobretudo na Reichspogromnacht, o cerco se fechou. Ficar deixa de ser uma alternativa, partir passa a ser um privilégio. Nos seis anos seguintes, o mundo será testemunha de um dos maiores crimes da e contra a humanidade. No Rio de Janeiro, o som das colheres batendo em tampas de panelas na Praça Onze em 8 de maio de 1945 vai celebrar o fim deste pesadelo. E dez anos mais tarde, em 14 de maio de 1948, o mundo vai assistir uma nação retomar a soberania sobre seu próprio destino.