Vocês foram estrangeiros na terra do Egito

por Charles Steiman

Reflexão apresentada após o Minian Matutino de Quinta na ARI
on-line via Zoom, 8 de fevereiro de 2023

A baixa renda coloca os direitos dos idosos em risco

50 milhões de pessoas estão presas na “escravidão moderna”. Mulheres e crianças são os mais afetados e indefesos

O texto dessa parashá me coloca numa situação um pouco delicada, pois traz leis, regras– mishpatim. Não que eu não as aprecie e não goste de ordem e disciplina. Não é à toa que estudei para ser designer gráfico, colocando textos, cores e imagens em ordem. Mas geralmente me incomodam certas aplicações de leis como ordenadas na Torá, ou por seu rigor datado de séculos ou milênios, ou por sua falta de contemporaneidade ou contexto. Por isso, sou um fiel defensor da abordagem adequada ao nosso tempo e momento.

Mas especialmente esse trecho da Torá traz algo não só atualíssimo, como também fundamental para a formação da conduta ética do povo judeu em qualquer tempo: o trato com o outro que está numa situação menos privilegiada que você, ou porque assim o é, ou por essa situação ter sido provocada por você. No caso da parashá: os servos e os estrangeiros, vassalos de um sistema de organização rural e familiar que necessariamente privilegia uns em detrimento de outros. Isso se repete ao longo da história do homem em qualquer sistema: muitas vezes no socialismo, os funcionários e o escalão dominante em relação desigual com uma população sem influência política alguma; no capitalismo, aqueles que detêm o capital em relação a trabalhadores que são obrigados a vender sua mão de obra; em qualquer sistema de poder, em que um pode mandar e está em posição dominante, e o outro tem por obedecer. 

A Torá não ignora isso! Lemos em Êxodo (Shemot) capítulo 20, versículo 22: Não enganem nem oprimam um estrangeiro, porque vocês foram estrangeiros na terra do Egito.” A lei divina compreende essa estrutura humana de organização social, mas nos impõe justiça e ética para lidar com ela. 

Há algum tempo me ocupo em refletir sobre opressão. Para opressão, oprimir, é usada na Torá a raiz LACHATZ, que no hebraico moderno é utilizado para definir estresse, estresse psicológico, um estado de espírito, um estado que pode causar doenças tanto psíquicas quanto comportamentais – tão corriqueiro hoje em dia. Quando não completamente compreendido hoje, ganhou pelo menos certa fama e uso no vocabulário popular.

Amigos próximos sabem como esse tema de oprimido e opressor me consome, em especial ligados à comunidade judaica. Antes mesmo do ataque hediondo cometido pelo grupo terrorista Hamas à população do moderno estado democrático de Israel.

Na minha opinião, nós judeus optamos ou parte de nós optou por abandonar o status de oprimido e travestir-se de opressores. Digo travestir-se, pois não somos! Como minoria histórica em qualquer época ou lugar, não somos per se opressores. E no nosso lar ancestral, onde como maioria poderíamos até nos comportar ou assumir esse status de opressor, somos lembrados especialmente nessa parashá, e na Haftará de Jeremias que é lida nesse sábado, que não somos: que não oprimiremos o estrangeiro, pois estrangeiros fomos na terra do Egito.

A Haftará lida para essa porção semanal é de Jeremias. A transgressão por parte da elite judaica no reino de Judá no trato de seus escravos, nesse caso hebreus e hebreias, é gravíssima. Jeremias apela em Jerusalém pela libertação dos escravos. Libertando os escravos fisicamente, aqueles israelitas alcançariam também a própria liberdade moral. A elite, do alto de seu disfarce de opressor, liberta os escravos para salvar sua pele, mas os escraviza logo em seguida quando se sentem salvos. E causam assim a derrota moral e física de Judá.

Essa parashá traz os shalosh regalim, as três grandes festas de futura peregrinação, em Ex. 23:14: “Três vezes ao ano vocês realizarão uma festividade para Mim: 15) celebrem a festa dos Pães não Fermentados – chag hamatsot; 16) e a Festa da ceifa, dos primeiros frutos do seu trabalho – chag hakatzir bikurei”, que veio a se tornar Shavuot; “e a Festa da Colheita, no Final do ano”, que será Sukot. Já a partir dessa parashá, com a menção de Pessach, chag hamatsot, começamos a nos preparar para a celebração da liberdade. Mas a mensagem é clara: Ex 23:9: “Não oprima um estrangeiro, pois você conhece os sentimentos do estrangeiro, por terem sido vocês mesmos estrangeiros na terra do Egito.” Em Ex. 23:9

Esse tema de oprimido e opressor não tem a ver com o papel de vítima ou algoz, menos ainda a uma situação explícita de opressão. Mas sim ao estado de identificar-se como um oprimido e assim desenvolver empatia por outros oprimidos e tratá-los com dignidade e sob a perspectiva da ética. Como nos ordena Deus nessa parashá.

Mas será que não chega se der o oprimido? Não, não acho. Entender-se como aquele que foi oprimido e libertado do Egito não significa que a sua sina é ser escravizado ou maltratado ou repreendido. Nessa mesma parashá lemos inúmeras leis (mishpatim) de como tratar e se relacionar com o escravo ou aquele que está aí para nos servir. O texto é claro, em especial para aqueles que se excitam em se ater à literalidade do texto bíblico: “Não enganem nem oprimam um estrangeiro, porque vocês foram estrangeiros na terra do Egito.”

Ser o oprimido é uma postura. O oprimido é empático com outros oprimidos, o opressor geralmente não o é. Pessach não é um jantar em família em que celebramos uma vitória. A vitória não é sua, judeu ou judia! Quem tirou você do Egito foi Deus, e somos lembrados disso a cada vez que recitamos o Kidush. E Ele nos lembra sempre que fomos escravos no Egito e, especialmente em Pessach, somos impingidos a nos sentir como se nós mesmos tivéssemos sido libertados do Egito. Ter empatia ou compaixão não é uma opção sua no Judaísmo, por bondade ou interesse: é uma obrigação!

Moisés foi criado como um príncipe egípcio, mas ele se religa à sua condição de oprimido quando vê um escravo hebreu ser açoitado. Ele não se compadece do oprimido, ele se identifica como o oprimido. A Torá não nos quer oprimido. Deus garante que os nossos inimigos serão os inimigos Dele e por sua intervenção venceremos guerras e teremos Paz.

Isso significa que Israel não deve se defender com movimentos militares na Faixa de Gaza? Não significa isso não, pois Israel deve defender seus cidadãos. Pois Israel é o país dessas pessoas, dos que estão sequestrados. Se o Hamas deixasse os israelenses sair, como o fez com os brasileiros, britânicos, filipinos, suíços ou franceses, não estaríamos nesse nível de ofensiva militar. Mas aos israelenses não é dado esse luxo da liberdade. E eles têm somente Israel para tentar libertá-los.

Quando leio que há judeus e judias em condição de abandono, quando leio que sobreviventes do Holocausto em Israel vivem em petição de miséria, ou quando presencio que nossa elite judaica, seja no Brasil ou qualquer outro lugar do mundo, não tem compromisso com nossos próprios afligidos, me pergunto: será que entendem que a matsá não é um pão não fermentado, mas sim o pão dos afligidos. Que aqueles que dizem a bênção e ingerem esse pão também devem se sentir como libertados do Egito? Que nada mais são do que oprimidos agraciados com bem-estar material e deveriam ter compaixão com outros afligidos e oprimidos?

Ler a Haftará de Jeremias, ou mesmo o livro todo, pode ser elucidativo. Não estamos mais na era dos juízes e profetas. Com a democratização da informação e nosso acesso cada vez mais fácil e muitas vezes descompromissado ao conhecimento, pulamos a fase da elaboração, da distinção, da aprendizagem e, assim, do filtro. E muitos de nós se agarram a mensagens reles, caminhos fáceis, levando necessariamente a comportamentos levianos. Mas a Torá está aí, bem como suas infinitas interpretações e comentários e reflexões. Se aqueles que só conseguem registrar da leitura dessa parashá, por exemplo, o trecho que proíbe cozinhar um filhote no leite da própria mãe e não entendem que isso é só estrogofe, então está na hora de ler tudo de novo. A chance é dada todo ano.

Sobre a discussão muito interessante da semana passada, a partir do estudo trazido por nosso emérito Germano Fraifeld, entendo que a Diáspora nos recolocou nessa posição de estrangeiro de novo, em todo lugar. E que essa posição ficou mais incômoda a partir dos movimentos nacionalistas europeus e árabes nos séculos 19 e 20. E que a sociedade em geral nos convenceu e nos alocou como o estrangeiro internacional – uma ameaça! 

Mas acredito que nós que temos o privilégio de ler e nos pautamos pela mensagem “Não oprima um estrangeiro, pois você conhece os sentimentos do estrangeiro, por terem sido vocês mesmos estrangeiros na terra do Egito”, temos a obrigação moral de reverter essa situação como luz entre as nações, não com arrogância política, machismo tóxico, ou discursos extremados. Fomos estrangeiros e produzimos o Talmud. Fomos estrangeiros e brilhamos na Era de Ouro na Espanha. Fomos estrangeiros e iluminamos a Europa com arte, cultura, arquitetura. E foi nessa situação de estrangeiro, que realizamos o sonho do lar ancestral. É nisso que quero acreditar como local e como estrangeiro!